Realização: Nicolas Winding Refn
Argumento: Nicolas Winding Refn
Elenco: Ryan Gosling, Kristin Scott Thomas e Vithaya Pansringarm
Na mitologia grega, a deusa Gaia casa com seu filho Urano e dá à luz os Titãs. Um desses Titãs, Cronos, ameaça a soberania do pai que, desesperado, tenta aprisioná-lo de volta no útero da mãe. Mais tarde, é Cronos que se vira contra o pai, a pedido da mãe, e o castra, lançando os seus testículos ao mar.
A mitologia está cheia de histórias bizarras, ultraviolentas. Pais que casam com as filhas, irmãos que dormem juntos, heróis castrados, impotentes, desesperados. Odisseias familiares sangrentas e perturbadoras. O novo filme de Nicolas Winding Refn,
Only God Forgives, é um mito moderno de luz néon, no qual guerreiros fazem frente a dragões, semi-deuses, numa tentativa desesperada de regressar ao útero da mãe, depois de terem assassinado o próprio pai.
A estes contornos mitológicos, Winding Refn acrescenta uma
ambiance noir que guia o espectador por entre o escuro e penetrante mundo de Bangkok
after dark. Bangkok é um sítio perverso, um recanto do mundo onde tudo é possível, onde a cena das drogas, das lutas ilegais e da prostituição de menores se une numa só para satisfazer os caprichos de exílados ocidentais cujos hábitos de vida se tornaram demasiado negros para o mundo civilizado.
Assim é Julian (Gosling), um ex-veterano de guerra que gere um clube de Muay Thai como fachada para um negócio de droga. Ao seu lado, outro guerreiro, o irmão Billy. Ambos violentos, ambos perdidos, de almas titnuradas para além da salvação. Mas enquanto Billy deixa a sua violência e negritude correrem livres - '
I wanna fuck a 14 year old girl' - Julian mantem a sua raiva enclausurada, vítima de uma constante humilhação por parte da mãe (Scott Thomas)
- 'Billy always had the biggest cock. Julian's was never small, but Billy's...'
. Quando Billy é assassinado, Julian é coagido pela demoníaca matriarca para procurar e matar o seu assassino.
O filme segue uma tradição milenar de contos de vingança. Se fosse só isso, teria pouco para me cativar. A verdade é que
Only God Forgives tem tanto de vingança como de perdão e impotência. O personagem de Julian começa uma interacção estranha com uma prostituta, com quem nunca tem relações sexuais. Os contactos apogeam quando Julian vê a prostituta masturbar-se à sua frente, esticando o pulso cerrado num gesto desesperado de pertencer a alguém.
O herói, aqui, é o vilão. O assassino do irmão, Chang, é um polícia que caminha pelas ruas em silêncio de espada às costas. É um semi-deus, um dragão -
'Time to meet the Devil' - e o guerreiro, por mais bem aventurado, não consegue derrotar o dragão. Chang simboliza a justiça, a placidez, o equilibrio, contra a tormenta interior de um ex-veterano que caminha por este mundo meio-adormecido, desligado, cujas mãos abertas em constantes planos pedem um perdão que só Deus pode dar.
Only God Forgives é uma obra de arte, e voltou a mostrar-me a beleza de um cinema de autor que nos transmite mensagens subliminares, cuja interpretação é necessária para que o ambiente e a história se unam num só. Palavras para quê? Os personagens quase não falam, as imagens contam a história.
Only God Forgives fala das almas perdidas que deambulam pelo submundo à espera que uma espada os derrote, ou os perdoe.
Golpes Altos: Absolutamente tudo. Desde Gosling, passando por Scott Thomas até Pansringarm, as interpretações são fabulosas. A cinematografia, a fotografia, o argumento e realização são um só - de autor. A banda sonora de Cliff Martinez já tinha mostrado os seus frutos em
Drive, aqui está ainda melhor.
Golpes Baixos: Críticos que deviam ser canalizadores ou jardineiros. A revista Sábado contribuiu hoje para a decadência da imprensa cultural nacional, quando deixou um senhor chamado Pedro Marta Santos dar 0% a este filme, sob o argumento de que é "pornográfico", comparando-o à Lista de Schindler de Spielberg que, segundo este senhor, também tem cenas "pornográficas". Pornográfica é a imbecilidade de certos críticos que deviam estar a escrever sobre programas de televisão e lhes é dada permissão para críticar arte.