terça-feira, 16 de abril de 2013

Golpes de Génio - Smultronstället (Morangos Silvestres)

Realização: Ingmar Bergman
Argumento: Ingmar Bergman
Elenco: Victor SjöströmBibi Andersson e Ingrid Thulin

De todas as falhas e virtudes do Cristianismo, uma permanecerá para sempre ligada ao lado mais triste do coração humano - a redenção. Até o mais agnóstico dos cientistas, no seu leito de morte, esperaria em silêncio por uma palavra de perdão, por uma luz divina que o lavasse de todos os seus pecados. Não vale a pena negar, é apenas humano.

Ingmar Bergman é provavelmente um dos três cineastas mais importantes de sempre. Realizou mais de 60 filmes ao longo de mais de 60 anos. Nenhum realizador abordou a morte, a fé e a redenção como Bergman - e ninguém tentou depois disso. Morangos Silvestres é um filme de final de vida, uma espécie de Christmas Carol, em que Scrudge é Dr. Borg - um médico que vai numa viagem de carro pelos campos suecos, na companhia da sua cunhada e de três adolescentes que encontra pelo caminho. Em certa medida, é o primeiro Road Movie da história do cinema, mas esse género só seria oficializado 10 anos mais tarde e no continente do lado.

A viagem empreendida pelo médico eleva-se da estrada para um patamar etéreo, no qual revisita os fantasmas da sua juventude - a namorada que o trocou pelo seu irmão, a mãe fria e castradora, o seu casamento falhado, a sua vida desperdiçada. Os Morangos Silvestres de Bergman simbolizam a sua origem, a sua natureza, as suas raízes. Borg apercebe-se ao longo do filme que se tornou algo que não queria. Apesar do trabalho que deixou como médico ter criado a fama de um homem caridoso, as pessoas que lhe são mais próximas acusam-no de frieza, de cinismo e de distância - e, nesta viagem, o velho doutor vê-se ao espelho, vê de onde veio e vê aquilo que isso lhe custou.

Uma das conclusões de Borg - e talvez a mais crítica - foi uma a qual eu próprio já cheguei e aprendi a aceitar. A inevitabilidade do nosso código genético, a sinistra certeza de que os erros dos filhos já foram os erros dos pais. Borg percebe que falhou onde a sua mãe falhou mas, pior que isso, criou um filho que é uma versão piorada de si. A sua visão cínica e derrotista da vida, o seu pessimismo e fatalismo presentes em cada frase originaram um filho incapaz sequer de ter uma relação - que vê o mundo como um lugar horrendo e a morte como o tão merecido descanso.

Esta é uma das obras mais importantes do século XX, e certamente o meu "Bergman" preferido. Porque, por incrível que pareça, todos nos identificamos com um personagem de 80 anos, todos vimos os mesmos erros cometidos, e é-nos dada a oportunidade de, enquanto somos novos, dar um rumo diferente à nossa vida e à nossa personalidade para que não acabemos como Borg, um velho amargurado à espera de morrer como viveu - sozinho. Mas, curiosamente, este não é um filme pessimista (e certamente não será um filme triste, se o compararmos aos restantes do realizador). É um filme com sentido de humor e que, no final, nos oferece uma cena de beleza rara - de redenção, de luz branca a reflectir na cara de Borg e do seu último e mais belo sorriso. Se não conseguirmos fugir aos fantasmas do nosso código genético, esperemos que a redenção nos chegue como chegou ao médico para que, no minuto final, possamos sorrir como ele sorriu.


Golpes Altos: Como é que é possível alguém nos anos 50 ter esta noção moderna de realização? É incrível! O actor principal, Victor Sjostrom, foi o realizador mais importante do cinema mudo Sueco, e um dos heróis de Bergman - foi essencial para a construção de um personagem que é metade Bergman, metade Sjostrom.

Golpes Baixos: Não há nada a apontar que faça sentido num filme destes. Provavelmente estará nos 10 melhores filmes de sempre. Existem coisas que hoje poderiam ser feitas melhor mas, curiosamente, ninguém as faz.

8 comentários:

  1. Avassalador! Faz crescer a alma e toca qualquer um. Bergman no seu melhor, cria uma densidade emocional na sua obra que nos remete para o inconsciente das personagens. Só assim conseguem resultar as sequências oníricas (o sonho da sua morte é brilhante). É também o meu favorito (se bem que a fonte da virgem... enfim, é contra-producente individualizar), porque tudo resulta e nos prende ao filme. Quem gosta de cinema gosta de Bergman, nem o Woody perdoou esta a Diane Keaton.

    ResponderEliminar
  2. Clap Clap Clap...

    É uma maravilha este filme. Realmente o que destaco é que todos nos identificamos com o senhor de 80 anos... Parece que nos obriga a começar este exercício que ele fez mais cedo, queremos cometer menos erros e com isso viver mais e melhor...

    O sonho da morte, o sonho do "tribunal" e claro...a cena do almoço de família... Estrondoso.

    O Bergman é um símbolo tal nestes temas que adorava ter visto o Amour feito por ele... é um filme incrível e dos melhores da década mas... fiquei sempre a pensar como seria se fosse dele...

    ResponderEliminar
  3. Os sonhos são todos incríveis, e claramente influenciaram TODAS as tentativas de sequências de sonho modernas. Mas o meu preferido é o primeiro deste filme, sem dúvida. Posso ser eu a sobre-interpretar, mas parece-me que os olhos que aparecem por baixo do relógio sem ponteiros nesse sonho, são uma referência ao Great Gatsby do Fitzgerald. Passo a explicar - parem-me se estiver a extrapolar demasiado:

    No gatsby, existem constantes referências a um cartaz com os olhos de T J Eckleburg (supostamente um qualquer anúncio para optometria). Mas estes olhos são sempre descritos num ambiente semi-onírico, e simbolizam a perda dos valores espirituais... Os olhos do sonho dos Morangos Silvestres puxaram-me imediatamente para isso, mas posso estar errado...

    ResponderEliminar
  4. Que filme brilhante e maravilhoso, obrigado pela recordação Buddy.
    Lembro-me de vê-lo juntamente com Det sjunde inseglet (The Seventh Seal) há muitos anos, ainda um miúdo, e pensar que nunca tinha visto nada filmado ou contado assim. E mal sabia eu que dificilmente voltaria a ver.

    ResponderEliminar
  5. Muito dificilmente poderá ser considerado o primeiro road movie da história do cinema. Hollywood já tinha feito umas coisas.
    http://www.imdb.com/title/tt0025316/

    ResponderEliminar
  6. Hmm... não sei se se pode considerar este um Road Movie. Estava a falar no género que foi inaugurado com o Easy Rider nos anos '60. Um Road Movie não é um filme em que pessoas andam de carro, é uma questão de estrutura...

    ResponderEliminar
  7. Sim, os filmes cuja acção se desenvolve durante viagens pela estrada fora e cujas personagens vão evoluindo/mudando ao longo dessas viagens foram mais tarde baptizados de road movies e surgia assim a designação de um género, mas não um género novo. O Easy Rider e o Bonnie and Clyde fizeram emergir o género e tornaram-no popular, depois desses foram feito road movies para todos os gostos. Se reparar, It Happened One Night, tem todos os ingredientes de um road movie e verá que influenciou muitíssimo o género.

    ResponderEliminar
  8. Acredito que sim, e provavelmente já existiam filmes semelhantes antes do Easy Rider. E provavelmente tem razão, hão-de ter existido outros filmes mesmo antes dos Morangos Silvestres com estrutura parecida. Mas quando utilizei a expressão Road Movie estava a referir-me aos já etiquetados. It Happened One Night está na minha to-see list!

    ResponderEliminar